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Artur Santos Silva: “Somos a favor da colaboração entre instituições para resolver grandes problemas”
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O presidente honorário do BPI dá a conhecer o trabalho da Fundação “la Caixa” e os vários programas de apoio social. Sublinha ainda o papel da banca na promoção da sustentabilidade e defende a importância da regulação no setor.
05 Mar 2025 - 01:21
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Artur Santos Silva é uma figura incontornável do sistema bancário português dos últimos 40 anos. Fundador do Banco Português de Investimento, o primeiro banco privado de investimento que surgiu no pós-25 de Abril e que conhecemos hoje como Banco BPI, foi o responsável pela sua gestão executiva durante quase 25 anos. Muito antes de os temas de responsabilidade social serem uma preocupação das empresas, o nosso convidado aliava já o seu ímpeto empreendedor a um forte sentido cívico que o fez tomar posição em várias ocasiões determinantes no nosso pais. Foi Secretário de Estado do Tesouro, Vice-Governador do Banco de Portugal, bem como, membro e gestor de várias instituições de cariz sociocultural, do qual se destaca a presidência da Fundação Gulbenkian.
Atualmente, é presidente honorário do BPI, mas também faz parte do “Patronato”, o Conselho de Curadores da Fundação “la Caixa”, a fundação responsável pelo CaixaBank em Espanha e, por inerência, do Banco BPI, coordenando as suas atividades em Portugal.
Artur, muito obrigada por ter aceitado este convite para estar connosco. Gostava que nos explicasse o que é exatamente a Fundação “la Caixa”.
Aceitei o seu convite com muito gosto. A Fundação “la Caixa” é hoje a 100% dona de uma holding que se chama Critéria Caixa. Esta, por sua vez, é a maior acionista do CaixaBank, que detém 31% do capital. O CaixaBank é, de longe, o maior banco de Espanha e é o CaixaBank que detém 100% do capital do BPI. A Fundação “la Caixa” começou no princípio do século passado com um capital – a valor atual – de 400 mil euros. Desde então, nunca mais solicitou uma peseta, ou um euro, como se queira dizer, a ninguém, e atualmente tem, em capitais próprios consolidados, mais de 20 mil milhões de euros. É uma das maiores fundações do mundo e é, claramente, também uma das maiores fundações da Europa. A Fundação “la Caixa” nasceu como uma Caixa de Pensões por iniciativa de um advogado espanhol que entendeu que era preciso, para a classe operária de rendimentos mais baixos, assegurar uma pensão. Depois do sucesso que teve com a Caixa de Pensões, criou também a Caixa de Aforro e, praticamente, um Banco. Mas tinha uma componente social muito forte. Doenças como a tuberculose e a cegueira foram, desde logo, combatidas. O papel da mulher na sociedade foi também promovido. Bem mais tarde, depois da democracia em Espanha e da privatização que houve das grandes empresas espanholas, a Fundação “la Caixa”, ou, como era conhecida, La Caixa, investiu em telecomunicações, em redes de autoestradas, em empresas de energia – quer eletricidade quer gás natural, petróleo, refinação e distribuição de petróleo – e águas, portanto, investiu nos setores daquilo que se denominam como ‘utilities’. Foi muito bem-sucedida nas apostas que fez, valorizando muito o seu capital. Ao mesmo tempo, tinha a obra social, o papel fundacional, e era um banco.
Estamos nos anos 80 do século passado, mais ou menos.
Já estamos no princípio deste século. O Banco Central Europeu obrigou a Fundação a separar a atividade bancária da atividade fundacional, da atividade social, do apoio à ciência, do apoio à cultura. Foi uma intervenção muito grande que a instituição sofreu. Neste seguimento, o nome do banco passou a ser CaixaBank e La Caixa passou a ser a Fundação “la Caixa”. O logo é o mesmo, inspirado numa obra do Miró – a estrela que é o símbolo quer do banco quer da Fundação “la Caixa”.
A Fundação, no princípio deste século, tinha um orçamento de perto de 100 milhões de euros por ano e, neste momento, tem um orçamento de 650 milhões por ano. Foi exatamente neste período que o CaixaBank se torna acionista do BPI. Depois de toda esta alteração e dos efeitos decorrentes da nossa crise da dívida soberana, gradualmente o La Caixa, hoje CaixaBank, passou de cerca de 33% para mais de 50%. Mais tarde, teve de fazer uma OPA geral e tem hoje 100% do capital.
A Fundação “la Caixa”, quando o BPI passou a ser detido a 100%, decidiu investir em Portugal o valor que corresponde à proporção do BPI face ao CaixaBank. O presidente da fundação manifestou publicamente – sem ninguém lhe pedir nada – o propósito da fundação vir a investir em Portugal na relação da dimensão do BPI com o CaixaBank.
E qual é a dimensão?
A dimensão é de um para dez. O CaixaBank é cerca de dez vezes o BPI em tamanho, em contribuição para a dimensão dos resultados, embora hoje o BPI apareça também refletido nos resultados do CaixaBank. E, portanto, com esse propósito, foi criada uma estrutura de governo em Portugal que comanda esta operação de gestão do orçamento anual. Começamos com 10 milhões, depois 20 milhões, e em 2024, já tivemos um executado na ordem dos 50 milhões. E esperamos continuar a crescer, tal como cresce o orçamento global da fundação. Hoje, somos provavelmente a maior fundação a operar em Portugal em atividades de ‘grant giving’, isto é, atividades de apoio à sociedade.
Qual é que é o orçamento anual da Fundação para a ‘grant giving’?
Praticamente, dos 50 milhões, quase tudo é ‘grant giving’. Nós não temos estruturas para fazer programação cultural ou divulgação da ciência, como a fundação tem em Espanha, que tem o Museu da Ciência – considerado o mais importante da Europa comunitária – o Cosmo Caixa, e uma rede nacional de centros culturais, denominados Caixa Fórum, muitas vezes construídos sob projetos de grandes arquitetos a nível mundial, onde têm atividades de exposições, conferências e uma agenda cultural muito diversificada.
Como não temos essas infraestruturas em Portugal, apoiamos as grandes instituições culturais. Neste momento, em atividades de ‘grant giving’, poderemos dizer que constituem 85% a 90% do nosso orçamento. Temos uma estrutura em Portugal que tem quatro pessoas no órgão de comando, que sou eu, o José Pena Amaral, que é o meu colega e trabalhou comigo no banco desde 1986, foi administrador executivo e responsável por muito do que era a nossa atividade também de responsabilidade social. Os dois estamos dedicados em ‘full time’ a esta atividade de gerir a fundação. E o José Amaral tem ainda um papel de consultor do Conselho de Administração do banco e pode assegurar uma interação – que convém que seja grande – entre o banco e a fundação. O António Barreto é também membro deste órgão e há um diretor – hoje integrado na direção-geral da Fundação “la Caixa” – que pertence a este órgão, que reúne duas vezes por mês, onde decidimos tudo aquilo para que temos poderes delegados para decidir. Hoje, no banco, o Fernando Ulrich, que é o ‘chairman’ do BPI, é também administrador do CaixaBank, e eu tenho esta posição em Portugal e estou no patronato, que é de facto um conselho de curadores da Fundação “la Caixa”. Somos 15, só é executivo o presidente, que foi presidente do todo, banco e obra social, e que optou por ficar na fundação na parte social de apoio à ciência e à cultura.
As atividades da Fundação “la Caixa” em Espanha circunscrevem-se à zona da Catalunha, ou estão pelo país todo? Estão sobretudo focadas aqui na Península Ibérica ou estão fora?
Atualmente, tudo o que a Fundação faz procura ser ibérico. Todos os concursos que faz ou são ibéricos ou são um desdobramento daquilo que se faz em Espanha. Neste momento, o mais importante é o programa pró-infância. É um grande êxito da fundação porque é um programa que apoia uma criança desde que nasce até ser jovem, atingindo os 18 anos. Procura, utilizando instituições do setor social escolhidas por concurso e a que a fundação dá os meios financeiros necessários, que uma criança, um jovem, tenha alimentação, apoio de saúde, apoio da família ao longo da sua vida. Para isso, é preciso apoiar e aconselhar permanentemente a família para que uma criança que nasceu num meio muito pobre tenha bem-estar, saúde e ambiente que lhe permitem ter sucesso escolar e beneficiar do grande elevador social que é a educação.
E nestes anos em que a fundação tem atuado em Portugal, já tem alguns resultados em termos de impacto social?
Em Espanha e em Portugal, cerca de 60% é gasto na área social, 20% na ciência e financiamento de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento e 20% em atividades de natureza cultural.
E qual é o valor anual atribuído ao programa Pró-Infância?
A fundação, como um todo, dedica a este programa 90 a 100 milhões de euros. É o programa que consideramos mais importante. Os resultados são excelentes. Em Espanha, a taxa de sucesso escolar ou é batida, ou é igual, ou apenas ligeiramente inferior, ano a ano, à média de Espanha. Isto é, uma criança que nasceu num ambiente de pobreza consegue ter uma evolução escolar que lhe permite atingir os padrões médios de Espanha. No programa para a infância, apoiamos entre 50 a 55 mil famílias. Crianças são cerca de 80 mil porque as famílias têm, em média, mais do que uma criança.
E em Portugal também, acredito eu.
Na Península Ibérica. Porque isto supõe um trabalho de muitos anos. Sobretudo ao longo dos últimos 15 anos, 20 anos. Portanto, definimos, com consultores especializados, métodos e processos e fazemos concursos com instituições do setor social que depois aplicam os nossos métodos e processos. Isto é o programa Pró-Infância. Mas o nosso objetivo é acompanhar a vida de um ser humano, do nascimento até uma certa maturidade, à idade adulta. Por esta razão, temos também um programa que se chama Incorpora, que permite integrar no mercado de trabalho aqueles que estão com dificuldade de entrar. Porque são jovens e não dispõem das habilitações superiores que o mercado exige ou que precisam de ser reciclados e reorientados para áreas para as quais não foram preparados. Pessoas sujeitas a violência doméstica, que, em regra, acontece porque a mulher, ou o homem também, às vezes, não tem liberdade ou capacidade para trabalhar e para ser independente do cônjuge. Pessoas que tenham uma deficiência física, psíquica ou mental. Este programa incorpora também reclusos a acabar de cumprir pena e que também precisam de melhorar os seus conhecimentos profissionais para poderem rapidamente, mal entrem em liberdade, entrar no mercado de trabalho. Pessoas que estão há anos desempregadas, em regra, porque a experiência profissional que têm deixou de ter procura. Este programa, por exemplo, em Espanha, no ano passado, representou uma integração no mercado de trabalho de mais de 40 mil pessoas. Em Portugal, colaboramos com o ministério que é responsável pela formação profissional, pelo trabalho e pela segurança social. Desenvolvemos programas de cooperação que permitem identificar pessoas que estejam nestes universos. Também colaboramos com instituições do setor social, que escolhemos por concurso, bem como com empresas que estejam dispostas a integrar estes beneficiários. Cerca de metade são pessoas com deficiência física, psíquica ou mental.
Isto é um exemplo durante a vida. Também procuramos conseguir a inclusão através da cultura e através das artes. Nós somos muito a favor da colaboração entre instituições para resolver grandes problemas. Por essa razão, juntámo-nos à Gulbenkian, que tinha um programa de inclusão pela arte semelhante ao nosso. De dois em dois anos, há um concurso em que distinguimos aqueles que procuram promover a inclusão social através da arte. O caso em Portugal eventualmente mais bem-sucedido é o da Orquestra Geração, e em que foi aplicada a metodologia dos venezuelanos. O programa chama-se ‘El Sistema’ e teve um grande sucesso.
No outro polo, estão as pessoas que têm uma idade mais avançada e para quem procuramos promover o envelhecimento ativo. Temos uma rede, sobretudo em colaboração com o poder local, o poder das regiões e, em Espanha, o poder dos próprios ‘ayuntamentos’, que procuram oferecer às pessoas acima dos 60 anos uma série de oportunidades para terem um envelhecimento ativo, ou aprendendo a trabalhar com computadores – com este mundo novo em que os mais velhos por vezes têm mais dificuldade em entrar – ginástica, dança, uma série de cinema comentado, conferências de temas interessantes. Mas não estamos a apoiar pessoas que tenham um envelhecimento com problemas de saúde, em que os problemas de saúde dominem. Queremos pessoas com uma saúde relativamente normal para a idade, mas que queiram descobrir e, portanto, que ainda tenham muito para dar e muito para fazer.
Sim, porque sabemos que as pessoas vivem muito mais hoje em dia e, portanto, têm de ter habilidades e de estar ativas.
Finalmente, perto da morte, temos uma rede de cuidados paliativos, que em Portugal, pelo estudo que fizemos, era uma das áreas onde seria mais importante dar um salto. Com o apoio de uma consultora que tinha um doutoramento e tinha já experiência nesta área de cuidados paliativos, adaptamos o sistema de Espanha às nossas necessidades e temos já a operar em Portugal onze redes, incluindo as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, em que o apoio social e o apoio psicológico são assegurados nas equipas que tratam nos hospitais de cuidados paliativos. Além dessas onze redes, temos mais cinco que são de cuidados paliativos domiciliários para as pessoas que querem morrer em casa. As pessoas que atingem a fase final de vida e que sabem que já não há muito a fazer para recuperarem a sua saúde mínima são pessoas para as quais, entendemos, o ideal é poderem ficar em casa, mas com o apoio de médicos, de enfermeiros, de psicoterapeutas, apoio social e também espiritual. As pessoas não têm de ter uma religião, mas vida espiritual todos temos e, portanto, temos psicólogos que ajudam a pessoa a resolver problemas dessa ordem. Isto para dizer que, no ciclo de vida, desde que se nasce até se morrer, nós procuramos ter programas.
Deixe-me interrompê-lo. Vejo-o a falar com tanto entusiasmo das atividades da Fundação “la Caixa” e acho extraordinário como é que uma pessoa que dedicou toda a sua vida profissional à área empresarial consegue também encontrar tanto entusiasmo nesta área social. E pergunto-lhe, onde é que se sente mais feliz? Eu vejo-o muito realizado também nestas atividades.
A minha matriz primeiro foi académica, foi trabalhar como assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Fiz o serviço militar na Marinha e depois, aos 26 anos, desafiaram-me para ir para a direção de um banco. Integrei então o Banco Português do Atlântico, que foi a minha escola.
E depois foi vice-governador do Banco de Portugal, mas já mais tarde…
Sim, fui no sexto governo provisório, que foi o governo que fez a descompressão do período revolucionário. Foi o último governo provisório, que durou quase tanto como os cinco governos anteriores.
Quem era o líder desse governo?
Era o Almirante Pinheiro de Azevedo, mas, de facto, na minha opinião, a pessoa que teve uma influência determinante nesse governo foi o Dr. Salgado Zenha, que era o ministro das Finanças e o meu ministro (nota: exercia nesta data as funções de Secretário de Estado do Tesouro). Nesse governo estavam vários ministros que eram as figuras centrais do chamado Grupo dos Nove, que foi o grande responsável pela descompressão da nossa revolução e pela normalização da nossa vida de todos os dias. Melo Antunes, Vítor Alves, Vítor Crespo, entre outros. Foi, para mim, um período de realização pessoal. A seguir, fui desafiado para ir para o Banco de Portugal e para ser o responsável pela coordenação do sistema bancário, que estava praticamente todo nacionalizado. E foi um período também muito interessante, mas não tínhamos governos maioritários e era muito difícil adotar uma política de estabilização. Defendíamos, enquanto equipa responsável no Banco de Portugal, que se tinha de seguir uma linha de grande austeridade, de redução da procura, de controle do desequilíbrio externo. Mas, como não havia um governo maioritário, não havia consenso para implementar essas políticas.
Era muito complicado.
Eu achei que não devia estar apenas a servir como comissão liquidatária de um país. E, portanto, decidi demitir-me. Voltei à vida académica, no Porto, na Universidade Católica. Depois, a convite do professor Mota Pinto, voltei para a Universidade de Coimbra como docente convidado e foi nesse período que decidi lançar o projeto que mais tarde conduziu ao aparecimento do BPI.
A Sociedade Portuguesa de Investimentos.
Exatamente. Mas, pelo ambiente em que vivi, quer da geração do meu avô quer da geração do meu pai e dos meus tios, sempre vivi muito preocupado em que tivéssemos um país a viver em liberdade e com muito mais justiça social do que tínhamos. E, portanto, a seguir ao 25 de Abril, tive essa experiência política que já falamos, mas a seguir o meu propósito como empreendedor financeiro, foi logo que a instituição também tivesse uma grande responsabilidade social.
Apoiar… Desculpe interrompê-lo, mas criar riqueza também é responsabilidade social, não é?
Claro, com certeza que sim. E se não criasse riqueza não podíamos ter responsabilidade.
É um tema muito importante que às vezes as pessoas esquecem.
É, mas isso é indispensável. Agora, eu nunca limitei os meus horizontes apenas a ter sucesso profissional. Sempre procurei participar na política, fiz parte da academia, estive do lado dos que contestavam o regime dominante, na grande crise de 62, que foi liderada pelo Dr. Jorge Sampaio, na estrutura de Lisboa, onde se deram os problemas mais importantes. Eu estive aí, participei na ação socialista, que foi o gérmen do Partido Socialista. Participei no arranque da SEDES, na atividade do núcleo, depois no Porto, onde eu vivia, e onde também, quando saiu da Assembleia, o Francisco Sá Carneiro passou a estar muito mais envolvido. Quando se criou o Partido Socialista, achei o programa muito radical – autogestão nas empresas, nacionalizações maciças nos setores de atividade, e não entrei, porque o meu pensamento era mais social-democrata e não socialista. Isto, claro, no papel, porque o Partido Socialista nunca promoveu o socialismo em Portugal. De facto, foi um partido social-democrata, e o PPD era o partido com o qual eu me sentia identificado.
E hoje em dia?
Hoje em dia, eu continuo a acreditar que a social-democracia é o grande caminho e, portanto, depende do que os partidos proponham, prometam e defendam, em cada momento. Eu estou a falar no espaço central da sociedade portuguesa e, portanto, aqueles que tiverem uma proposta mais fidedigna em relação à social-democracia. Isto é, combinar a propriedade privada dos bens de produção com os papéis fundamentais reguladores do Estado e com uma grande preocupação social.
Por falar em questões do papel regulador do Estado, como é que vê o panorama bancário nacional na atualidade e o papel do regulador?
Eu, sumariamente, posso dizer o seguinte: houve uma crise financeira que começou nos Estados Unidos, que nessa altura nos passou ao lado, porque quer Portugal quer Espanha, investiram pouco naqueles produtos financeiros construídos nos Estados Unidos e que destruíram muitos bancos. Nessa fase, nós não fomos muito prejudicados, mas depois, por erros dos reguladores, nem era o Banco Central Europeu, era a ‘European Banking Authority’ (EBA), os bancos portugueses, na generalidade, sofreram muito por terem mudado as regras a meio do jogo dessa instituição.
Pode especificar?
Posso! Na crise financeira que se seguiu a 2007, ao ser desmascarado o papel desses instrumentos, que eram construídos pelos bancos de investimento, muitos bancos investiram no que não sabiam. Felizmente, não foi o caso de Portugal. Mas a maneira que os bancos centrais tiveram de ajudar o sistema bancário foi emprestando-lhes dinheiro a um custo muito inferior à receita que eles podiam obter investindo em dívida pública. E o que aconteceu? Os bancos, para não correrem riscos da flutuação do preço da dívida pública, colocavam na sua contabilidade esses títulos, títulos que não iam deter para atividade de ‘trading’, mas que iam deter até ao vencimento. Era um investimento estratégico até ao vencimento. A diferença de taxa de juro era o subsídio que permitiu o ‘Federal Reserve System’ salvar imensos bancos com esses apoios. Na Europa, o BCE e os bancos nacionais também fizeram o mesmo. E, portanto, se amanhã a dívida pública onde nós investimos, na Grécia, em Portugal, em Itália, na Irlanda, descesse na sua cotação, isso não gerava prejuízo, porque nós mantínhamos os títulos na nossa contabilidade ao valor de investimento e não ao valor de mercado. A maior parte dos países tinha banco central não com função emissora, mas um regulador, como era o caso de França, de Inglaterra e de outros. Esses, estando em maioria, aprovaram uma alteração das regras que obrigava os bancos que tinham dívida pública subavaliada pelo mercado a cobrir com capitais próprios a diferença entre o valor investido e o valor de mercado. E foi isso que nos colocou a nós, à Espanha, à Itália, à Irlanda e a outros com problemas sérios. Inglaterra, França, Alemanha ou os países nórdicos não tiveram estes problemas, porque a dívida que eles tinham estava sobrevalorizada. O valor desses títulos estava acima do valor nominal. Então, eles não tinham problema nenhum pois não tinham de emitir capital porque tinham esse vento favorável. O país que mais sofreu foi a Grécia, mas nós também fomos muito afetados e, portanto, os bancos foram muito afetados por esse quadro.
É uma perspetiva interessante que nunca tinha ouvido.
A Troika resolveu este problema. Porque uma fatia importante do apoio que a Troika nos concedeu foi para financiar aumentos de capital, e desta maneira, recapitalizar. Com que instrumentos? Com aqueles que se chamavam COCO, ‘compulsory convertibles’. Isto é, os bancos deviam dar lucros e com os lucros viriam a reembolsar esses empréstimos. O Estado apenas nomeava um administrador para acompanhar a atividade dos bancos e o BPI até foi o primeiro banco a reembolsar todo esse apoio.
Do meu ponto de vista, a Regulação funcionou bem e acho que é justo referir a equipa que nessa altura governou o Banco de Portugal e que evitou que nós tivéssemos uma situação muito mais dura de digerir, como foi o caso dos bancos irlandeses. Nós tivemos a possibilidade, com aquelas inspeções que foram feitas às carteiras de crédito… Um banco vai à falência ou a uma situação de pré-falência se falha na gestão dos riscos de crédito. Os maiores colapsos que tivemos no nosso sistema financeiro, quer o BPN quer o Banco Espírito Santo, resultaram de não ser suficientemente explícita a situação de risco das carteiras de crédito desses bancos. Hoje em dia, há uma máquina reguladora grande, há um apoio muito importante que continua a ser dado pelos bancos centrais.
Mas sente que há uma regulação excessiva, visto de fora, já que atualmente não tem funções executivas?
Eu penso que foi muito importante o trabalho feito para uma arquitetura comum de regras, mas considero que há uma regulação excessiva. É muito importante a regulação numa perspetiva de proteger os bancos de novos problemas, mas, por exemplo, tudo o que tem a ver com a escolha dos gestores bancários deve ser mais célere.
Menos discricionário, talvez?
Não é o problema do discricionário. Eu acho que a maior parte das vezes os juízos estão bem, o que falta é mais celeridade nesses processos. Isso é um dos aspetos que convém melhorar. E, do meu ponto de vista, a regulação tem que simplificar muitos processos porque temos realmente hoje instalada uma máquina burocrática.
Como é a sua perceção relativamente à regulação e a tudo o que é supervisão no âmbito da transição verde? Há várias instituições que se queixam que há uma série de reportes novos que têm de ser feitos, que têm de ter vastas equipas para acompanhá-los.
Eu devo dizer-lhe o seguinte, acho que os bancos têm um papel muito importante nessa matéria. Infelizmente, temos o mundo ameaçado com as alterações climáticas. Não conheço em detalhe quais são as regras, mas reconheço que os bancos têm um papel muito relevante em relação àquilo que é o ESG – ambiente, sustentabilidade e governança.
Considera que os bancos devem ser o motor desta transição?
Eu acho que os bancos têm um papel muito importante, mas para isso é preciso que haja também um comportamento global…
Como sabe, nos últimos meses têm saído, a pouco e pouco, vários bancos, sobretudo norte-americanos, da Net Zero Alliance, precisamente uma aliança bancária para fazer face à transição energética, ou seja, a desmarcar-se dos compromissos que foram assumidos. Alguns bancos estão, no fundo, a regredir.
Para mim, mais importante é perceber que o grande país, o país mais poderoso em termos militares, em termos económicos e em termos políticos, os Estados Unidos da América, abandonou o Acordo de Paris. Anunciaram também que iam sair da Organização Mundial de Saúde e destruíram, ou melhor, acabaram com uma instituição como a Agency for International Development (AID). Esta agência teve, aliás, um papel muito importante em Portugal, a seguir ao 25 de Abril. Quando o nosso país começou a ter um quadro estável, político e económico, a AID interveio em grande escala e ajudou muito à modernização do país até à nossa entrada na CEE. A partir daí passamos a ser formalmente um país desenvolvido, e a AID não intervinha a não ser em países em desenvolvimento.
A supressão da AID foi das primeiras medidas de Elon Musk, e eu acho que é muito importante que a América não abandone as suas responsabilidades em relação aos grandes temas do mundo, para contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. Vivendo como se vive na América Central, na América do Sul, em África, é fundamental que os países que possam, tenham uma intervenção maior. Considero também o papel da imigração importantíssimo… A imigração tem um papel fundamental, mas se queremos travar esse fluxo à terra prometida que, por exemplo, os africanos têm em relação à Europa, é fundamental que se criem oportunidades de trabalho nas terras onde vivem através de uma cooperação e ajuda ao desenvolvimento.
Percebo que têm obrigação, mas com esta nova administração nos Estados Unidos, não está a acontecer pelo contrário, não é? Como é que vê o futuro próximo?
Tenho a maior das preocupações pelas posições muito flutuantes que estão a ser tomadas, porque hoje diz-se uma coisa e amanhã diz-se o contrário. Por exemplo, em relação ao problema dos dois focos de guerra que hoje temos no Médio Oriente e na Ucrânia, é fundamental que os países que tenham um projeto comum partilhem essas responsabilidades e tudo façam para pôr termo a estas situações intoleráveis. Quer num lado quer no outro, acho que não podemos lavar as mãos e deixar de intervir. Espero que isso venha a acontecer e que seja possível por termo à guerra na Ucrânia e à guerra no Médio Oriente, sem os excessos que têm sido cometidos no caso do Médio Oriente e no respeito pelos direitos dos palestinianos. E em relação à guerra na Ucrânia, o infrator não pode ser o vencedor. Tem de haver um compromisso, com certeza. Mas é preciso que esse compromisso seja assumido, partilhado e equilibrado.
Ainda relativamente aos temas da diversidade e do ESG que falámos há pouco, como é que vê a participação, por exemplo, das mulheres e a necessidade de haver uma certa diversificação na gestão das empresas? Acha que é, de facto, importante? São só palavras bonitas?
Acho que não, acho que não são palavras bonitas. Acho, aliás, que as mulheres levam a que Portugal, no quadro da OCDE (composto pelos países mais desenvolvidos do mundo), tenha um indicador de doutorados fundamental para se avaliar a qualidade do ensino e da qualificação. Portugal, salvo erro, é o segundo país da OCDE que tem maior percentagem de mulheres doutoradas, na categoria de investigadoras. É aí que se faz a diferença. É aí que o mundo muda, através da investigação e da geração de conhecimento, que se pode converter em valor económico através da inovação. E, portanto, as mulheres portuguesas colocam-nos nesse patamar.
Em termos de investigação, mas e em termos de tomada de decisão nas empresas?
Posso dizer, no caso do BPI, que temos oito homens, em quinze elementos, no Conselho de Administração.
Portanto, já há quase paridade…
Há quase paridade e a maioria da população é feminina. E desde o princípio que assim foi. Na altura, havia, em algumas instituições, um grande desequilíbrio. No nosso caso, as mulheres tiveram o papel que deviam ter na formação da equipa, que na altura, como banco de investimento, era uma equipa mais sofisticada e que, depois, quando passamos a ter responsabilidades também na banca comercial, beneficiamos muito das estruturas que os bancos já tinham, e na admissão de novos colaboradores. As mulheres tiveram uma presença muito, muito forte.
É a favor das quotas?
Não sou a favor das quotas. As quotas podem ajudar a combater um propósito que devia ser espontâneo e natural. Não acho que seja necessário, mas acho que é devido. Não há quotas para nós fazermos desta forma, mas há uma orientação. Uma coisa é seguirmos um caminho, porque nos orientam nesse sentido e essa orientação pode ser dada pelos acionistas, pelos líderes, mas acho que as mulheres podem contribuir decisivamente para uma boa governança, para que a instituição tenha mais alma, mais coração e mais cabeça. Acho que quem não aproveita as mulheres perde.
Uma pergunta que gostava de fazer, também mais pessoal, e porque o tempo já está a escassear, refere-se ainda ao tema do empreendedorismo. Nós agora falamos muito em ‘startups’, em ‘fintechs’, em novas empresas. Enquanto empreendedor, porque é um empreendedor, porque criou o primeiro banco de investimento privado em Portugal após o 25 de Abril, que conselhos daria a um jovem que estivesse agora a iniciar a sua empresa?
Acho que tudo deve ser feito para que pessoas que tenham vontade de arriscar, que tenham boas ideias, com ou sem boa formação superior, mas colmatada por conhecimentos suficientes que a vida profissional lhes proporcionou, arranquem com projetos próprios. Eu estimulo muito os mais novos, sobretudo se tiverem já tido a oportunidade de ter uma experiência razoável, ou muito interessante, numa empresa onde as grandes funções da gestão estão presentes. Portanto, com dois, três anos de experiência, já percebeu o que é importante para ser bem-sucedido. Se tiver uma boa ideia, é avançar e isso acontece. Aconteceu nos Estados Unidos, nós vemos em personalidades como o Bill Gates ou os dois irmãos Hewlett-Packard, e até em sucessos mais recentes. Quem tem boas ideias, se tiver os pés bem assentes, se perceber que tem de ter capitais próprios – ou mobilizá-los – para as suas ambições, deve fazê-lo. E hoje há imensos fundos a investir em capital de risco quando estão perante boas ideias. E daí o papel da investigação ser tão importante. Quem descobrir um segredo, quer nas ciências de saúde, quer nas tecnologias, nas telecomunicações ou na maneira de fazer comércio, através da investigação, tem a possibilidade de fazer provas de conceito que mostram que um caminho tem sentido. Pois então, que se lancem à água se tiverem experiência suficiente. Em Portugal já temos, salvo erro, 11 unicórnios, isto é, empresas que não estando cotadas têm capacidade para atrair capitais e têm um valor teórico que é superior a mil milhões de euros.
E a banca está a apoiar devidamente todos esses empreendimentos? Ou seja, está a fazer o seu papel enquanto apoia a economia a novos empreendimentos?
Não, os novos empreendimentos têm de ser, como disse, sustentados num forte capital próprio. Para isso, é preciso ter boas ideias, que sejam apresentadas a esses fundos de capital de risco, como acontece na América, para eles apostarem. Porque se não tiver uma base de capital razoável, é muito difícil rapidamente conseguir dar o salto. E, portanto, isso não é o papel dos bancos.
Dos bancos tradicionais. Sim, é verdade que, de modo geral, os bancos tradicionais, os bancos comerciais, não apoiam as ‘startups’, mas na América apoiam.
Não são os bancos. Quando os depositantes lhe pedirem dinheiro, eles têm de ter meios para o converter no ‘cash’ que lhe foi confiado. Os bancos não devem intervir nesse tipo de situações que não têm liquidez, que não é possível convertê-las de um dia para o outro em liquidez. Os bancos têm um papel convencional, que é captar recursos e aplicá-los através do crédito. Não é participar no capital. Aliás, as regras hoje, nomeadamente na Europa, contrariam o mais possível.
Mas podem apoiar em termos de tesouraria, por exemplo.
Com certeza. Eu acho que esse papel é assumido e é do interesse dos bancos. Agora, tem de haver uma base de capital sólida para apoiar uma captação de recursos que ofereça alguma garantia. Não vejo isso muito assumido como um problema, desde que se tenha uma boa situação financeira, uma boa situação económica… Quando se tem uma grande ideia, para converter esse conhecimento gerado por processos sólidos em valor económico, temos de partilhar essa oportunidade com outros investidores, que são muito exigentes, que estão dispostos a perder e a ganhar… E esse é o papel do capital de risco, não é o papel dos bancos. O papel dos bancos é, sim, o de emprestar, não é o de participar no capital.
Muito bem. Queria agradecer mais uma vez a sua presença. Acho que tivemos aqui uma conversa muito interessante, que dava pano para mangas. Podíamos estar aqui a falar mais três horas. Resta-me esperar que continue o seu excelente trabalho na Fundação “la Caixa” e também o vosso trabalho no BPI, obviamente. Para todos vocês, muito obrigada e até à próxima.
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